domingo, 10 de julho de 2011

VAMOS COM CUNHA SANTOS - CLAUSURA

Com Cunha Santos

1 - O sentimento dos seres inanimados

O homem tem sobre si a carne que é ao mesmo tempo seu fardo e sua tentação”. Não vou pensar no resto. Não estou à altura de Victor Hugo mas me enternece, despudoradamente, me enternece sua capacidade de dar vida às coisas inertes. Como fez com o edifício amaldiçoando-o como inferno finalista da humanidade em “O Corcunda de Notre Dame”.

Em “Os miseráveis”, obra prima do gênio, não caberão experimentos didáticos nem Ensaios quando Victor Hugo se refere ao cadafalso; é preciso transcrevê-lo:

“O cadafalso, com efeito, quando está lá preparado e aprumado tem qualquer coisa que alucina. Podemos ter certa indiferença em relação à pena de morte, podemos não nos pronunciar, dizer sim ou não, enquanto não virmos com os próprios olhos uma guilhotina; mas se encontramos uma o abalo é violento temos de nos decidir a favor ou contra. Uns a admiram como De Maistre outros maldizem como Beccaria. A guilhotina é a concreção da lei, chama-se vingança, não é neutra nem permite que se fique neutra. Quem a vê estremece com o mais misterioso dos estremecimentos. Todas as questões sociais levantam em torno deste cutelo sem ponto de interrogação.

O cadafalso é uma visão. O cadafalso não é uma viga de madeira. O cadafalso não é uma máquina, o cadafalso não é um mecanismo inerte feito de madeira ferro e corda. Parece ser uma espécie de criatura que possui alguma sombria iniciativa. Parece que essa viga vê, que essa máquina ouve, que esse mecanismo compreende, que essa madeira, esse ferro e essas cordas têm querer. No devaneio medonho em que sua presença joga a alma o cadafalso surge, terrível, e envolvido com o que faz. O cadafalso é o cúmplice do algoz; ele devora; ele ingere carne, ele bebe sangue. O cadafalso é uma espécie de monstro fabricado pelo juiz e pelo carpinteiro, um espectro que parece viver um tipo de vida espantosa feito de todas as mortes que gerou”.

E piso eu na frase que diz que a hipótese da existência de Jeová só serve para produzir gente magra, para, de forma quase absoluta fugir da civilização e enredar-me nas coisas mortas que Victor Hugo faz viver.

Estou cansado, de fato, da notícia, das luzes artificiais, do conforto tecnológico, da beleza feminina em busca de mais beleza, dos músculos dos homens; nada quero que me transmita essa letargia, esse escrever obrigatório; nem se quer penso se é legal ou ilegal a morte do terrorista ou a explosão do captólio.

Quero como Victor Hugo em “Os Miseráveis” que esses andaimes saibam o que estão fazendo e que haja um propósito pensado e planejado dos prédios que vão desabar sobre nossas cabeças.

Nem lhes dou o direito de pensarem em mim como escritor ou bom cronista; antes que isso quero que sintam a desesperança das almas, das coisas mortas e alcancem a supremacia de entender que todas as questões sociais dependem do bom ou mau humor de um simples cutelo.

Estão vivos vocês? Por que acham que estão vivos? Por que lhe foi dado um relógio um horário de trabalho alguns cartões de crédito e contas no banco, filhos que não lhes obedecem e um vazio tão intenso que lhes obrigam à embriaguez.

Não estão vivos. Vivo está o edifício amaldiçoado do poeta francês; Vivo está o cadafalso de Victor Hugo, a guilhotina que todos os dias nos corta as cabeças sem que saibamos que crimes cometemos, sem que tenhamos cometido crime algum.

Como Jornalista.

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